Agosto Dourado – O quê, por quê?

A lenda romana ressalta a importância da amamentação com a história de Rômulo e Remo, fundadores de Roma, alimentados por uma loba¹. Saindo do mito, a literatura especializada informa que entre os indígenas das Américas o aleitamento durava entre os 3 e 4 primeiros anos. Também se diz que durava até cerca de 7 anos, quando as crianças começavam as atividades de caça². Povos como os egípcios, babilônios e hebreus, por cerca de três anos³.

Historicamente, esse ato natural, protetor contra a morte precoce⁴, e potencializador de laços afetivos (e aqui estão indicados alguns dos benefícios da amamentação), tem por objetivo o cuidado/sobrevivência da criança, que nasce no mais completo desamparo. O bebê humano precisa dos adultos, por intermédio dos quais “se instala” no seu tempo, e é a mãe e/ou o pai, ou quem às vezes lhe fizer, que inicia (m) o processo lento e constante de garantir a saúde e a integração do pequeno ser na comunidade humana.

No entanto, embora sendo a “estratégia” da natureza para garantir a sobrevivência da espécie, na cultura ocidental observou-se o declínio do ato de amamentar na Modernidade, mais precisamente a partir dos séculos XVIII e XIX. Com efeito, e segundo a literatura, França e Inglaterra protagonizaram o desmame, ao argumento de que os corpos femininos envelheciam precocemente e tornavam-se disformes pela prática⁵. Observou-se também, já no século XX, década de 1960 em diante, o assédio da indústria de leite em pó às mães, para que substituíssem o leite materno⁶. A partir daí, o ato de amamentar tornou-se raro.

A partir da década de 1990, o Brasil aderiu a uma série de compromissos internacionais, inclusive no que respeita à promoção do aleitamento, enquanto política de saúde pública. Assim, surge campanha “Agosto Dourado”, instituída pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), no ano de 1990. Com o objetivo de incentivar a amamentação do bebê, recebeu o predicado “dourado” em atenção à riqueza que é esse alimento natural. O que há de importante no ato de amamentar, a ponto de reclamar uma campanha mundial?

Nas sociedades complexas como a nossa, a produção de bens e serviços confere à fabricação e à gestão das coisas e pessoas uma importância artificial, que se sobrepõe ao humano, impondo o desmame precoce. Por isso, o ato de amamentar, capaz de atuar na formação dos vínculos afetivos, sociais e culturais, o direito da criança ao aleitamento, precisa ser garantido por lei. A lei pretende o ajuste de comportamentos desejáveis, entre os quais se destaca o retorno e o incentivo ao aleitamento com leite materno, pelas razões já enunciadas. O aleitamento materno é prioridade constitucional:

CF “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Nesse sentido, e no processo formal de adesão do país ao “Agosto Dourado” da OMS/UNICEF, entrou em vigor a Lei 13.435/2017, que instituiu o mês de agosto como “Mês do Aleitamento Materno”, no decorrer do qual são intensificadas as campanhas de esclarecimento sobre a importância da prática do aleitamento. Mais recentemente, a Lei 13. 872/2019, garante o direito de as mães amamentarem seus filhos durante a realização de concursos públicos nos diversos níveis da administração pública, nos Poderes da União.

Mas ainda que com atraso de duas décadas no processo de implementação formal ao “Agosto Dourado”, há, na legislação brasileira, uma série de mecanismos de incentivo e proteção ao aleitamento. Veja-se, exemplificativamente, alguns, a começar pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8069/90, de grande alcance:

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Art. 8 o É assegurado a todas as mulheres o acesso aos programas e às políticas de saúde da mulher e de planejamento reprodutivo e, às gestantes, nutrição adequada, atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério e atendimento pré-natal, perinatal e pós-natal integral no âmbito do Sistema Único de Saúde.

§ 7 o A gestante deverá receber orientação sobre aleitamento materno, alimentação complementar saudável e crescimento e desenvolvimento infantil, bem como sobre formas de favorecer a criação de vínculos afetivos e de estimular o desenvolvimento integral da criança.

Art. 9º O poder público, as instituições e os empregadores propiciarão condições adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães submetidas a medida privativa de liberdade.

§ 1 o Os profissionais das unidades primárias de saúde desenvolverão ações sistemáticas, individuais ou coletivas, visando ao planejamento, à implementação e à avaliação de ações de promoção, proteção e apoio ao aleitamento materno e à alimentação complementar saudável, de forma contínua.

§ 2 o Os serviços de unidades de terapia intensiva neonatal deverão dispor de banco de leite humano ou unidade de coleta de leite humano.

Art. 10. Os hospitais e demais estabelecimentos de atenção à saúde de gestantes, públicos e particulares, são obrigados a:
VI – acompanhar a prática do processo de amamentação, prestando orientações quanto à técnica adequada, enquanto a mãe permanecer na unidade hospitalar, utilizando o corpo técnico já existente.

A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, por sua vez, em seu art. 392, prevê a licença-maternidade de 120 dias, e dispensa do horário de trabalho para realização do pré-natal. O Art. 394, A, III, da CLT, por sua vez, garante à trabalhadora o afastamento de atividades insalubres, em qualquer grau.

À lactante e à adotante é garantido o direito de dois descansos especiais durante a jornada de trabalho, de 30 minutos cada, para amamentação (Art.396, §§ 1º e 2º). Em empresas com número de mulheres superior a 30, deverão destinar local adequado para a permanência de crianças, conforme o Art. 400 da CLT (assim, sala de amamentação, berçário, etc). A licença-alimentação é a forma de concretizar as orientações das organizações internacionais e as políticas públicas nacionais para a infância.

Também a Ordem dos Advogados do Brasil prevê, no Art. 7º de seu Estatuto, uma série de direitos titulados pela advogada gestante e lactante, entre os quais a local adequado para atender as necessidades do bebê, no que se inclui, por dedução, a amamentação.

A Lei 10.048/2000, especialmente em seus artigos 1º a 3º, assegura a reserva de assentos em fila especial para gestantes e lactantes, nos transportes públicos. A Lei de Execuções Penais prevê estabelecimentos penais destinados a mulheres com berçário, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade (art. 83, § 2º lei 7210/84).

Por último, mas igualmente importante na proteção e fortalecimento de vínculo com a criança, cabe referir a licença-paternidade⁷, de apenas 5 dias, podendo ser estendida por mais 15, se a empresa aderiu ao programa “Empresa Cidadã”, mantido pela Receita Federal. Trata-se da Lei 11.770/2008, que prorrogou a licença-maternidade mediante a concessão de benefício fiscal.

Mesmo o prazo de prorrogação é pequeno. Estudos comprovaram que a maior adesão da mãe à amamentação depende de uma série de fatores, entre os quais apoio emocional e melhor distribuição das tarefas que envolvem a casa e os cuidados com o bebê. Destaca-se também, o fortalecimento do vínculo entre pai e criança, efeito desejável e importante⁸.

Referências

¹ ICHISATO, Sueli. O desmame através de recortes da história. Disponível em http://www.ibfan.org.br/documentos/outras/doc-483.pdf – Acesso em 08/8/2023

² PEREIRA, Celeste. Amamentação: desejo ou sina? Disponível em
https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/80615/152109.pdf?sequence=1&isAllowed=y – Acesso em 08/8/2023.

³ ICHISATO, ob.cit.

⁴ O leite materno transmite anticorpos que protegem contra infecções como as respiratórias. O risco de asma, infecções, obesidade, é menor em crianças que recebem leite humano. Nesse sentido:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12822010000200017 –
https://www.fiotec.fiocruz.br/noticias/outros/7911-alerta-para-os-beneficios-da-amamentacao-e-apoio-asmaes-marcam-o-agosto-dourado – Acesso em 08/8/2023.

⁵ PEREIRA, ob.cit.

⁶ Nesse sentido: Assédio da indústria de alimentos infantis a profissionais de saúde em eventos científicos.
Disponível em: https://scielosp.org/pdf/rsp/2022.v56/70/pt
https://oglobo.globo.com/saude/bem-estar/noticia/2022/08/fiocruz-70percent-dos-pediatras-arecebempatrocinios-da-industria-de-formulas-infantis-no-brasil-mostra-estudo.ghtml – Acesso em 08/8/2023

⁷ O STF deverá se pronunciar sobre o tema em agosto de 2023:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/07/03/stf-analisa-se-ha-omissao-do-congresso-em-fazer-leicom-prazo-para-licenca-paternidade.ghtml  – Acesso em 09/08/2023.

⁸ Sobre o tema: https://www.santacasamaringa.com.br/noticia/317/o-papel-vital-do-pai-no-apoio-aamamentacao – Acesso em 09/08/2023

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